"Toda posição de saber está socialmente situada." – Thamy Ayouch
Quem fala, sempre fala de algum lugar.
Essa frase me acompanha há algum tempo. Sempre que me preparo para falar em público, me lembro dela. Situar a fala é mais do que uma formalidade acadêmica. É reconhecer que toda voz carrega responsabilidade, história e, em algum nível, vulnerabilidade.
A mais recente revisita a esta pergunta foi no I Simpósio Políticas do Saber, organizado pela Unifatec PR em Curitiba, onde compus uma das mesas. Compartilho aqui o que organizei para compartilhar com os participantes.
De onde eu falo?
Falo como mulher cis, branca, mãe, engenheira, mestre em Engenharia Florestal, psicóloga e pós-graduanda em Psicanálise e Análise do Contemporâneo. Falo também como professora e psicóloga clínica. Estou entre máquinas e afetos — e com isso, trago o desafio da escuta em um mundo produtivista.
Hoje, escolho trazer uma reflexão que tem mais progonismo no mundo da Psicologia e Psicanálise, mas sem deixar de ser influenciada por todo o restante de minha história.
Sabemos que psicanálise é a cura pela palavra. Psicanálise, palavras, etimologias... O ponto de partida, então, pra organizar a fala? O nome do simpósio: Políticas do Saber.
A palavra “política” vem do grego politikós, que significa “relativo ao cidadão”. Se queremos cidadania para todos, precisamos revisitar o que entendemos por cidadania. Isso parece óbvio hoje, mas nem sempre foi. Durante muito tempo, negamos cidadania a corpos dissidentes. Silenciamos, excluímos, asilamos.
Um exemplo doloroso da nossa história é o chamado Holocausto Brasileiro. Mais de 60 mil pessoas morreram em Barbacena (MG), muitas sem sequer apresentarem transtornos mentais. Foram internadas por razões sociais e políticas, como nos mostra a jornalista Daniela Arbex em seu livro-reportagem. A luta antimanicomial — que celebramos em 18 de maio — nasce justamente da recusa desse apagamento: é a reivindicação por cidadania plena para todos.
A etimologia da palavra “saber” nos revela que ela vem de sapere — que significa tanto ter gosto quanto ter discernimento. O saber, portanto, não é apenas informação. É experiência, afeto, presença. É saborear o mundo, e isso exige coragem (que significa agir com o coração).
Durante a abertura do simpósio, um professor disse algo que me marcou: “A academia não é neutra. Estudar exige coragem.” A coragem de agir com o coração. A coragem de sair da neutralidade que paralisa, silencia e torna tudo insosso — sem sabor, sem saber.
Na psicanálise, o trauma tem tempos. Um tombo pode virar trauma ou não, dependendo do que vem depois. Se a criança é desmentida — “não foi nada” — talvez o machucado seja menos doloroso que o silêncio. O mesmo vale para situações muito mais graves: o abuso, o racismo, a homofobia, a transfobia. A estrutura já está posta. Os eventos (tempos 1 do trauma) já ocorrem o tempo todo e são, muitas vezes, inevitáveis. O que define o trauma é o tempo 2: o modo como a sociedade responde, ou não, ao que foi vivido.
Todos nós estamos sujeitos a errar. O importante é o que fazemos quando somos convocados a escutar. Podemos nos ofender, nos defender — ou podemos escutar de verdade. O convite ao letramento racial, de gênero, à escuta da diferença, é um convite à transformação ética.
A psicologia, enquanto ciência que se debruça sobre a subjetividade humana, não pode se declarar neutra. Como bem nos lembra o psicanalista Christian Dunker, decretar que nossas formas de adoecimento não têm relação com nossas formas de vida é perversão.
Ignorar os atravessamentos sociais — como raça, gênero, classe e sexualidade — é também praticar epistemicídio, ou seja, calar saberes outros, saberes plurais, saberes que saboreiam o mundo de outros lugares.
Sou pós-graduanda em Análise do Contemporâneo, e gosto da definição da Fernanda Caravez: contemporaneidade não é apenas um recorte histórico, é uma atitude. É estar em constante subversão, em permanente questionamento.
Nesse contexto, é importante lembrar que o lugar de fala demanda organização e visibilidade — mas o lugar de escuta é responsabilidade de todos nós. Mesmo que eu não pertença a certos grupos, posso me responsabilizar eticamente pela escuta. Não é sobre ocupar o centro da fala, mas sobre garantir que ela ecoe. Calar o outro é desumanizá-lo — e, nesse ato, desumanizar também a mim mesma.
Escutar é político. Reconhecer nossos privilégios é político. Lutar para que todos tenham voz — e para que saibamos saborear essa diversidade de saberes — também é político.