Este artigo está organizado em forma de perguntas disparadoras para pensar estes três temas importantes, que frequente e intensamente se entrelaçam na vida contemporânea, especialmente entre millennials e a Geração Z.
Reflexão 1:
Por que categorizamos transtornos? Afinal, eles geram sofrimento, e a classificação ajuda a organizar métodos e tratamentos para aliviá-lo. No entanto, se o sofrimento é uma experiência compartilhada, por que o DSM-5 e outros manuais se concentram em categorias individuais – com a curiosa exceção da “loucura a dois”? Essa ênfase na individualidade pode reforçar a ideia de que o sofrimento é isolado, impedindo uma compreensão coletiva dos desafios emocionais. Será que, por meio do autodiagnóstico online, estamos buscando uma espécie de comunhão no sofrimento, ao adotarmos rótulos prontos que circulam nas redes sociais?
Um podcast relevante, o Ciência Suja, discute, no episódio "Mentes medicadas: o novo normal?", a problemática do DSM-5, destacando críticas do psiquiatra Allen Frances – um dos responsáveis pelo DSM-3 e diretor do DSM-4 – que aponta para a fragilidade das categorias diagnósticas e laudos apressados. O autor escreve:
O DSM 5 sofre a infeliz combinação entre ambições excessivamente elevadas e uma metodologia frouxa. Sua esperança otimista era criar um avanço na psiquiatria. Em vez disso, o resultado é um manual que não é nem seguro, nem cientificamente correto. Por exemplo, ele introduziu novos transtornos que permeiam o tênue limite da normalidade: Transtorno da Compulsão Alimentar, Transtorno Neurocognitivo Leve e Transtorno Disruptivo da Desregulação do Humor. A menos que estes diagnósticos sejam usados com moderação, milhões de pessoas essencialmente normais serão mal diagnosticadas e submetidas a tratamentos potencialmente danosos e estigma desnecessário.
Reflexão 2:
Muitos jovens – estima-se que cerca de 1/3 da Geração Z consulte o TikTok para informações sobre saúde mental – encontram nas redes sociais uma maneira rápida de se identificar e se sentir parte de um grupo. Nesse contexto, o autodiagnóstico online se transforma em uma estratégia de autoidentificação e validação social. Essa prática, embora momentânea, preenche uma lacuna existencial e oferece uma identidade temporária, reforçando a sensação de pertencimento, mesmo que de forma superficial.
Reflexão 3:
Qual o real benefício de rotular o sofrimento? Muitas vezes, os pais buscam um diagnóstico não apenas para ajudar seus filhos, mas para encontrar um rótulo que lhes traga segurança, evitando enfrentar a complexidade dos vínculos afetivos e das emoções. Assim como é mais fácil rotular uma mãe como “narcisista” do que encarar as nuances de um relacionamento conflituoso, a busca por um nome para o sofrimento infantil pode funcionar como um mecanismo de proteção emocional, minimizando a responsabilidade de lidar com questões profundas e multifacetadas.
Reflexão 4:
O autodiagnóstico feito de maneira superficial pode deslegitimar tanto o sofrimento real quanto o trabalho dos profissionais da saúde. Por exemplo, em 2019, o “teste do Ursinho Pooh” viralizou no Twitter com 33 questões e categorias inusitadas – como “Leitão (ansiedade)”, “Bizonho (depressão)”, “Cristóvão (esquizofrenia)”, “Guru Canguru (autismo)”, “Abel (TOC)”, “Tigrão (TDAH)” e “Poof (TDA)” – exemplificando como rótulos virais podem trivializar condições sérias. Todas as respostas do teste forneciam, inevitavelmente, um percentual de transtorno para qualquer um que a ele se submetesse.
Além disso, essa banalização pode levar ao fenômeno conhecido como efeito Haro: a pessoa adota um diagnóstico e, ao fazê-lo, passa a agir de acordo com o rótulo, que, por sua vez, reforça e transforma a identidade da pessoa. Essa dinâmica complexa evidencia como as redes sociais podem transformar uma busca por informação em um ciclo de autolabeling prejudicial.
Reflexão 5:
Um diagnóstico preciso demanda uma abordagem multidisciplinar e cuidadosa. Profissionais como psicólogos, psicanalistas, psiquiatras e assistentes sociais – juntamente com especialistas em nutrição, endocrinologia, entre outros – colaboram para compreender o sujeito em sua totalidade:
Psicólogos e psicanalistas: exploram a subjetividade e as nuances emocionais.
Psiquiatras: avaliam aspectos fisiológicos, como desequilíbrios hormonais e deficiências nutricionais (por exemplo, falta de vitamina D).
Assistentes sociais: consideram o contexto familiar e social do indivíduo.
Essa abordagem integrada é essencial para evitar diagnósticos apressados e tratamentos que podem causar estigma e danos desnecessários.
Reflexão 6:
Há uma intersecção preocupante entre a forma como as redes sociais influenciam a percepção dos transtornos e o crescente consumo de medicamentos. Por um lado, plataformas digitais como o TikTok são projetadas para capturar e manter a atenção dos usuários; por outro, observamos um aumento de cerca de 30% na venda de antidepressivos e remédios para concentração nos últimos 5 anos. Essa correlação sugere que tanto a indústria farmacêutica quanto as gigantes das mídias sociais podem estar moldando e medicalizando o cotidiano, transformando desafios emocionais em oportunidades de mercado e reforçando a ideia de que rótulos diagnósticos são a solução para problemas complexos.
Enfim, publico o presente texto como uma provocação para a reflexão sobre a forma como diagnosticamos, identificamo-nos e interagimos com a saúde mental na era digital. Ao compreender as nuances do autodiagnóstico, da influência das redes sociais e dos desafios impostos por manuais como o DSM-5, podemos repensar nossa relação com o sofrimento e buscar abordagens mais humanas e coletivas para promover o bem-estar psicológico.
Um abraço,
Psicóloga Elisa.
Principal referência:
CIÊNCIA SUJA. Mentes medicadas: o novo normal? Spotify, 2024. Podcast. Disponível em: https://open.spotify.com. Acesso em: 17 fev 2025.